Casas de quem foi e voltou, casas de quem não regressou
- zearaujo1
- 19 de out. de 2021
- 5 min de leitura
Arquivo ACH - 31-7-2020
Caras/os associadas/os e amigas/os
Esperamos que estejam a passar um Verão tão agradável quanto possível, atendendo aos tempos que estamos a viver e aos constrangimentos que a pandemia a todos impõe, a bem da saúde própria e alheia.
Casas de quem foi e voltou
Noutros tempos, nestes meses de Julho e Agosto de tantos arraiais que agora não teremos como antes - apesar das previstas celebrações contidas das datas festivas - as casas animavam-se, recebendo os que regressavam para "as festas", num processo que favoreceu múltiplos contactos culturais entre os que foram e voltaram provisória ou definitivamente e os que ficaram, os que construíram na terra natal a casa para um futuro regresso ou os que adaptaram as casas aí herdadas a novos conceitos de habitabilidade e conforto.
Curral das Freiras. Festas de Agosto (MC, 2019. Arq. ACH) Tantas casas rurais - muitas novas, algumas recuperadas, outras abandonadas e em ruínas - associadas a histórias de emigração, de saudade da realidade que se deixou cá e entretanto se transformou, mesclada com a saudade do que se deixou lá, no mundo para onde se partiu um dia, quase sempre abandonando uma vida dura e sem perspectivas. Nas primeiras gerações que voltavam por altura das "festas", a valorização de novos costumes e idiomas era evidente e identificada pelos próprios e pelos que haviam permanecido na terra natal como símbolos de um recém-adquirido estatuto.
Nas gerações seguintes dos que partiram e dos que ficaram, assiste-se crescentemente à revalorização da herança cultural e à preservação de memórias identitárias, em diálogo com esse incontornável legado da emigração que marcou a ruralidade madeirense, em especial nas décadas de 60 e 70 do séc. XX.
Entre várias outras iniciativas reveladoras deste renovado interesse, destacamos:
Projecto "Memórias de São Roque do Faial – As vozes dos Emigrantes":
A iniciativa assenta no trabalho desenvolvido por quatro irmãos com raízes nesta freguesia que, desde 2013, têm recolhido e divulgado informação sobre o tema através da Internet e das redes sociais, bem como no âmbito do projecto "Memória das gentes que fazem a história", desenvolvido até 2019 pelo Centro de Estudos de História do Atlântico – Alberto Vieira.
Projecto "Herança Do Curral das Freiras":
Este é um interessantíssimo projecto participativo comunitário recentemente iniciado e gerido pelo fotógrafo Nuno Gonçalves, através da criação e dinamização de um grupo de partilha de imagens e memórias, dedicado a preservar a história do Curral das Freiras com vista à constituição de um "arquivo fotográfico e histórico, criado por todos nós e partilhado com todos".
Casas de quem não regressou
As casas - as novas, as recuperadas e as abandonadas, que pontuam a paisagem madeirense - dos que ficaram e dos que regressam pontualmente ou para sempre, evocam um passado mais distante de outras levas de emigração, em que quem partia raramente regressava. Ou pelas dificuldades da viagem, ou por não quererem ou poderem voltar à dura realidade deixada para trás, esta era uma ida sem regresso.
Dessas vagas de emigração dos finais do séc. XIX, recordamos aqui (a partir de um artigo recente, cujo link abaixo
indicamos) os que, em diversas levas, partiram para a distante Angola onde fora decidido pelo Estado português, no
âmbito da política colonial de ocupação efectiva dos territórios africanos, "implementar este grande projecto de colonização baseado em Madeirenses uma vez que o Lubango tinha sido oficialmente definido em 1874 como o centro da colonização".
A perspectiva exposta neste artigo quanto à fixação inicial dos madeirenses na colónia de Sá da Bandeira (actual Lubango) contrasta com as narrativas oficiais portuguesas transmitidas durante muitas décadas.
“Povoamento” da Mapunda. Encontros e desencontros num espaço eminentemente Colonial.
Helder Alicerces Bahu DOI:10.12957/transversos.2019.41856

1. Prazeres, Madeira. Habitação rural. (MC, 2020. Arq. ACH)

2. Lubango, Angola. Antiga habitação da família Antero (década 1920), cedida posteriormente ao seu trabalhador, Chipa. (Bahu, 2019, p. 284) Facilmente reconhecemos nesta habitação angolana (2) os traços característicos das casas rurais madeirenses (1), modelo que os colonos levaram para o Lubango e se tornaram "casas com histórias" como esta de Chipa, seu actual proprietário. Como se processou a transposição deste tipo de habitação para o sul de Angola?
Depois de tentativas anteriores de ocupação destes territórios por portugueses terem fracassado, devido à agressividade climática e má imagem de África então veiculada na Europa, o governo português decidiu desviar parte do fluxo da emigração destinada ao Brazil para África e enviar para Angola colonos madeirenses, porque estes "(…) emigravam em grande número da sua ilha e eram tidos na conta de trabalhadores e bastante tenazes perante as dificuldades, fixando-se com facilidade nas terras para onde se dirigiam. (...) Os colonos da Madeira levam família, criam raízes na terra onde se estabelecem e formam povoações definitivas e seguras". O " primeiro grupo, a bordo do navio Índia, chega a Moçâmedes em 18 de Novembro de 1884. O segundo grupo contava com mais de cem madeirenses que atravessaram com muito sacrifício e dias de viagem, o árido deserto de Moçâmedes (o deserto do Namibe, em território angolano, é denominado "deserto de Moçâmedes") e longos vales para se estabelecerem no Lubango (durante o período colonial, o município manteve esse nome, que após a independência de Angola passa a denominar também a cidade de Sá da Bandeira, anterior designação da capital da província de Huíla) no dia 19 de Janeiro de 1885. Encontraram apenas uma cabana de capim para os albergar e, insatisfeitos, pensaram em voltar mas o mar ficava tão distante que um retorno seria ainda mais desesperante. Entenderam ficar e começaram a pensar em praticar a agricultura para a sua subsistência porque se sentiam mais pobres do que estavam na Madeira. A data do estabelecimento da segunda vaga de madeirenses é tida como a data da fundação da colónia de Sá da Bandeira". "A precariedade dos barracões e a exiguidade de condições de instalação disponibilizadas conferiam aos novos inquilinos períodos difíceis e, se calhar, piores aos da terra de origem". Só mais tarde, após trabalho árduo, abandonam as iniciais cabanas de capim (que deram o nome de "Barracões" ao primeiro local da sua instalação), quando o "melhoramento da dieta alimentar e estabilização de uma realidade anteriormente agreste trouxe consigo um melhoramento das habitações que, numa lógica uniformitária (sic), desenhou um modelo bastante generalizado", da tipologia das casas rurais da Madeira (imagem 2). Grande parte destes colonos madeirenses que se dedicaram à agricultura foram ali duplamente discriminados, nessas primeiras décadas da sua instalação: angariados para a ocupação daqueles territórios inóspitos pelo estigma da pobreza e falta de perspectivas na sua terra natal, eram tratados com desdém pela administração colonial e pela população urbana (que os designava "mapundeiros", no sentido de "rústicos").

Memórias difíceis, algumas registadas e muitas ainda por conhecer, de emigrantes-colonos que em vez da prometida prosperidade que os levara a partir da Madeira enfrentaram condições duríssimas, e que depois de mal instalados em barracões precários, construíram as suas habitações, rurais e madeirenses como eles, no longínquo espaço africano - "casas com histórias" das quais algumas ainda hoje permanecem no Lubango, província deHuíla, sul de Angola (a vermelho no mapa).
Aos interessados, para melhor enquadramento histórico deste tema, ler também:
Migração ultramarina: contradições e constrangimentos
Cláudia Castelo, in Ler História, 56/2009 (Emigração e Imigração), p.69-82
https://doi.org/10.4000/lerhistoria.1950 Fiquem bem, neste tempo de Verão, atentos às muitas casas a merecer registo, dispersas pela Madeira e Porto Santo. Continuamos a trabalhar na constituição de um banco de dados de "casas com histórias", esperando que continuem também a partilhar connosco os vossos indispensáveis contributos (memórias e imagens).
A Direcção da Associação Casas com Histórias
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